Justiça
de Gênero: Fundamentos bíblico-teológicos[1]
“Corra
porém o juízo com as águas, e a justiça como um rio impetuoso.” (Amós 5,24)
Na tradição bíblica há testemunhos de defesa da
vida, principalmente da vida em condições de vulnerabilidade. A Bíblia afirma
que o projeto de Deus para o mundo é a vida, não somente da mulher e do homem,
mas também de toda a criação: Deus não é somente o Criador, mas também aquele
que garante as condições para que a vida possa ocorrer (Gênesis 1-2). Esta
mensagem de vida é assegurada nas palavras e ações de Jesus, cujo ensino sobre
o reino de Deus indica a presença de Deus na história e conduz à superação de
todas as barreiras que impedem ao ser humano a sua plena realização. Sua
proclamação lembra tanto a soberania criadora e sustentadora de Deus sobre o
mundo e a responsabilidade de cada ser humano diante do Senhor da criação
quanto um chamado ao cumprimento do propósito divino de igualdade para toda a
criação.
Deus, autor e sustentador da vida, sempre se
manifesta na forma de novas experiências com novos horizontes. Dessa forma,
formulou-se a sua manifestação como aquele que ouve o clamor do seu povo e
desce para libertá-lo: “‘Eu Sou Aquele Que Sou’. Ele disse: ‘Assim dirás aos
filhos de Israel: Eu sou enviou-me a vós!’” (Êxodo 3,14). Por esta razão, a
memória histórica Israel sobre sua origem, o êxodo, fundamenta a construção de
uma nova sociedade e sua consciência como povo afirma-se em torno desta
experiência que trouxe consequências sobre a formação da sua religião. Suas
leis constitutivas repudiam a injustiça, o estar sob o domínio do outro,
injustiça da qual Deus os libertou. Tais leis dispensam atenção especial aos
grupos vulneráveis – grupos com direitos sociais reduzidos -, protegendo-os e
procurando restabelecer a igualdade: prescrevem um “dízimo para o pobre” a ser
recolhido ao fim da cada três anos, dá permissão para saciar a fome em seara
alheia e estabelecem o “ano da remissão”: de sete em sete anos, todas as
dívidas deveriam ser perdoadas e a liberdade deveria ser devolvida aos que,
porventura, tivessem sido escravizados (Deuteronômio 15,1-11). A preocupação
com a fome dos necessitados é clara: o dízimo da colheita e a parte que ficava
no campo destinavam-se ao órfão, à viúva, ao levita e ao estrangeiro
(Deuteronômio 14,22-29). Ademais, o que envolvia estes grupos ou a perversão do
direito era acentuado no tocante ao estrangeiro: “Não oprimirás o estrangeiro:
conheceis a vida do estrangeiro, porque fostes estrangeiros no Egito” (Êxodo
23,9). “Eu sou compassivo” é o princípio teológico que serve de base para o
direito. O direito nasce da vontade de Deus e o grito dos vulneráveis
provocaria a sua intervenção.
Neste sentido, entende-se porque profetisas e profetas,
num novo momento histórico, reinterpretam o acontecimento libertador que serve
de base às instituições de Israel. Sua pregação coincide com o período da
monarquia israelita, que criou novos grupos e acentuou as distinções sociais.
Os profetas referem-se ao passado, às origens de Israel, para rejeitar a
injustiça. Lá buscam a inspiração para a construção de uma sociedade mais
justa. Aceitar a injustiça é recair na situação de servidão anterior à
libertação do Egito. Conhecer a Deus é “fazer justiça” (Deuteronômio 10,16-19;
Jeremias 22,13-19; Oséias 6,4-16). Eles acusam a monarquia de provocar a morte
de lavradores como Nabote (1 Reis 21), condenam os reis por serem idólatras (1
Reis 14,1; 19). Defendem os “pobres”, isto e, os camponeses empobrecidos, não
totalmente livres, mas que ainda não haviam se tornado escravos. Mostram como
era a vida do camponês que era expulso de suas terras por pessoas que tinham “o
poder em suas mãos” (Miqueias 2,1), explorado de modo radical, até os ossos, e
forçado a trabalhar em Jerusalém, uma cidade feita com o sangue dos camponeses
(Miqueias 3,1-4). Denunciam a violências contra o povo (Oseias 4,1) e os
corruptos, exigindo uma nova prática: “Atendei o direito do órfão e pleiteai a
causa das viúvas” (Isaías 1,17). Acusam diretamente o estado de cumplicidade
com a anarquia junto aos tribunais (Isaías 1,23). A monarquia há muito
esquecera a defesa dos pequenos: buscava recompensas, aceitava subornos e
encobria os desmandos dos poderosos (Isaías 10,1-2). A corrupção da justiça
protegia os que planejavam abusos, os que necessitavam da lei tornavam-se
desprotegidos, e o culto era usado para encobrir a injustiça (Jeremias 7).
Da mesma forma, Jesus Cristo, o filho de Deus, dá
atenção especial justamente às pessoas que viviam à margem da ordem vigente na
sua época: pecadores, mulheres, crianças, ignorantes da Lei, em suma, os que
eram considerados pecadores e impuros. Sua mensagem sobre o reino de Deus,
interpeladora e cheia de esperança, significa uma mudança nas suas condições reais
de vida. Ele chama de felizes os pobres, os que choram, sofrem e são
perseguidos por causa da justiça, pessoas que estavam excluídas do bem viver.
Jesus denuncia também o uso ideológico da Lei que legitimava a separação entre
as pessoas. Na sua época, as pessoas que se consideravam justas e puras diante
de Deus não raramente coincidiam com os representantes dos grupos dominantes da
sociedade. Os doentes, os fracos, mulheres e crianças eram classificados como
pecadores e impuros, ou seja, eram vistos como pessoas que estavam numa
situação irregular diante de Deus, o que resultava na sua exclusão das várias
esferas da sociedade. Estas pessoas eram destinatárias e protagonistas do reino
de Deus e Jesus, ao colocar-se ao seu lado e manter comunhão com elas, derruba
as barreiras erguidas por uma sociedade estratificada e marginalizadora. Para
libertá-las, Jesus conscientiza-as do seu valor diante de Deus, libertando-as
para a sua própria identidade. Ele reivindica para a sua atuação a presença do
reino do Deus, uma contra realidade oposta à realidade experimentada no mundo.
Sua prática do reino, enquanto interrupção da alienação dá voz àqueles que não
podiam falar, ajuda para a articulação própria àqueles que haviam sido
emudecidos.
Nos relatos dos encontros de Jesus com as mulheres
notamos também a mesma prática de misericórdia. Estes relatos foram
transmitidos a partir de uma perspectiva que não é propriamente dessas
mulheres, mas as suas vozes de resistência que podem ser recuperadas nas
fissuras dos textos oferecem sua visão e interpretação do ministério de Jesus e
do anúncio do reino que toma forma na restauração de pessoas em geral esmagadas
pela dor e sofrimento. O protagonismo das mulheres no movimento de Jesus e nas
novas comunidades que foram criadas é evidente. As mulheres seguiam a Jesus,
foram testemunhas dos seus ensinamentos e ações (Marcos 15,40-41; Lucas 8,1-3)
e integradas na nova família do povo de Deus com pleno direito. Celebra-se
também sua lealdade, autenticidade e permanência, sua iniciativa e audácia, sua
palavra e diaconia no novo grupo e seu
poder relacional. Suas ações e palavras, expressão de pertença ao povo de Deus,
simbolizam a reconfiguração do espaço cotidiano, em especial a casa, como o
espaço imaginado para o novo grupo. Destaca-se também o valor pessoal das
mulheres, sua luta para conseguir uma vida plena e integrada, os desejos que
ultrapassam os limites impostos por uma sociedade androcêntrica e patriarcal e
a memória que incomoda, pois questiona e empodera para uma liberdade maior e
criatividade na vivência de um serviço mais amplo e integrador nas comunidades
e fronteiras do mundo de então.
A criação de novas comunidades como espaço de
solidariedade, como prática de justiça, de solidariedade e de interrupção da
violência ocupa um lugar importante na mensagem do apóstolo Paulo, cuja
compreensão de que o reino de Deus irrompeu na morte e ressurreição de Jesus
Cristo, um acontecimento que desvela o mistério da era vindoura e torna
possível o cumprimento da promessa, conduz à declaração de que Ele é o
fundamento da identidade e unidade das comunidades que surgiram a partir da
pregação da “palavra da cruz” (1 Coríntios 1,18-25). Em Cristo “não há judeu
nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher; pois todos vós sois
um em Cristo Jesus” (Gálatas 3.28). Não são os critérios distintivos de raça,
etnia, gênero e classe social, próprios da cultura greco-romana que definem a
identidade e pertença à comunidade de fé, mas o poder da palavra da cruz: “Vede, pois, quem sois, irmãos, vós que recebestes o
chamado de Deus; não há entre vós muitos sábios segundo a carne, nem muitos
poderosos, nem muitos de família prestigiosa. Mas o que é loucura no mundo,
Deus escolheu para confundir os sábios; e o que é fraqueza no mundo, Deus escolheu
para confundir o que é forte; e, o que no mundo é vil e desprezado, o que não
é, Deus escolheu para reduzir a nada o que é” (1 Coríntios
1,26-28).
As experiências com o Deus compassivo e
misericordioso manifestam-se tanto na história do povo de Israel quanto nas
palavras e ações de Jesus Cristo e nas memórias dos seus primeiros seguidores.
No início, o Deus compassivo e misericordioso envolve-se no mais profundo do
seu ser pela dor e sofrimento de pessoas e grupos vulnerabilizados. O universo
inteiro, que é obra de suas mãos e expressão de sua palavra criadora, alegra-se
e fortalece-se na ação libertadora de Deus, que responde ao grito do seu povo e
o liberta para uma vida de justiça e prática da solidariedade. O reino de Deus
que irrompeu na vida e missão de Jesus Cristo indica a reconciliação de todas
as coisas, a superação de todos os antagonismos seja entre a humanidade e a
natureza, povos e nações, mulheres e homens, gerações e raças. Ao exploramos
este tema, descobrimos que ele revela a fonte da missão de Jesus, o Deus a quem
Jesus chama Pai, em cujo Espírito proclamava a boa nova de salvação e em cujo
nome convocava os homens e mulheres ao arrependimento e à fé. O chamado de Deus
ao seu povo envolve uma vida de esperança, de testemunho do reino e da justiça,
onde uma vida mais plena é respeitada, onde mulheres e homens vivem uma vida
comunitária mais integrada e as instituições da sociedade favorecem aos mais
necessitados.
[1]
Texto elaborado por Dr.Dr. José Adriano Filho, para construção do documento
Politica de Gênero da ONG Diaconia.