segunda-feira, 8 de maio de 2017

Justiça de Gênero



Justiça de Gênero: Fundamentos bíblico-teológicos[1]

“Corra porém o juízo com as águas, e a justiça como um rio impetuoso.” (Amós 5,24)

Na tradição bíblica há testemunhos de defesa da vida, principalmente da vida em condições de vulnerabilidade. A Bíblia afirma que o projeto de Deus para o mundo é a vida, não somente da mulher e do homem, mas também de toda a criação: Deus não é somente o Criador, mas também aquele que garante as condições para que a vida possa ocorrer (Gênesis 1-2). Esta mensagem de vida é assegurada nas palavras e ações de Jesus, cujo ensino sobre o reino de Deus indica a presença de Deus na história e conduz à superação de todas as barreiras que impedem ao ser humano a sua plena realização. Sua proclamação lembra tanto a soberania criadora e sustentadora de Deus sobre o mundo e a responsabilidade de cada ser humano diante do Senhor da criação quanto um chamado ao cumprimento do propósito divino de igualdade para toda a criação.
Deus, autor e sustentador da vida, sempre se manifesta na forma de novas experiências com novos horizontes. Dessa forma, formulou-se a sua manifestação como aquele que ouve o clamor do seu povo e desce para libertá-lo: “‘Eu Sou Aquele Que Sou’. Ele disse: ‘Assim dirás aos filhos de Israel: Eu sou enviou-me a vós!’” (Êxodo 3,14). Por esta razão, a memória histórica Israel sobre sua origem, o êxodo, fundamenta a construção de uma nova sociedade e sua consciência como povo afirma-se em torno desta experiência que trouxe consequências sobre a formação da sua religião. Suas leis constitutivas repudiam a injustiça, o estar sob o domínio do outro, injustiça da qual Deus os libertou. Tais leis dispensam atenção especial aos grupos vulneráveis – grupos com direitos sociais reduzidos -, protegendo-os e procurando restabelecer a igualdade: prescrevem um “dízimo para o pobre” a ser recolhido ao fim da cada três anos, dá permissão para saciar a fome em seara alheia e estabelecem o “ano da remissão”: de sete em sete anos, todas as dívidas deveriam ser perdoadas e a liberdade deveria ser devolvida aos que, porventura, tivessem sido escravizados (Deuteronômio 15,1-11). A preocupação com a fome dos necessitados é clara: o dízimo da colheita e a parte que ficava no campo destinavam-se ao órfão, à viúva, ao levita e ao estrangeiro (Deuteronômio 14,22-29). Ademais, o que envolvia estes grupos ou a perversão do direito era acentuado no tocante ao estrangeiro: “Não oprimirás o estrangeiro: conheceis a vida do estrangeiro, porque fostes estrangeiros no Egito” (Êxodo 23,9). “Eu sou compassivo” é o princípio teológico que serve de base para o direito. O direito nasce da vontade de Deus e o grito dos vulneráveis provocaria a sua intervenção.
Neste sentido, entende-se porque profetisas e profetas, num novo momento histórico, reinterpretam o acontecimento libertador que serve de base às instituições de Israel. Sua pregação coincide com o período da monarquia israelita, que criou novos grupos e acentuou as distinções sociais. Os profetas referem-se ao passado, às origens de Israel, para rejeitar a injustiça. Lá buscam a inspiração para a construção de uma sociedade mais justa. Aceitar a injustiça é recair na situação de servidão anterior à libertação do Egito. Conhecer a Deus é “fazer justiça” (Deuteronômio 10,16-19; Jeremias 22,13-19; Oséias 6,4-16). Eles acusam a monarquia de provocar a morte de lavradores como Nabote (1 Reis 21), condenam os reis por serem idólatras (1 Reis 14,1; 19). Defendem os “pobres”, isto e, os camponeses empobrecidos, não totalmente livres, mas que ainda não haviam se tornado escravos. Mostram como era a vida do camponês que era expulso de suas terras por pessoas que tinham “o poder em suas mãos” (Miqueias 2,1), explorado de modo radical, até os ossos, e forçado a trabalhar em Jerusalém, uma cidade feita com o sangue dos camponeses (Miqueias 3,1-4). Denunciam a violências contra o povo (Oseias 4,1) e os corruptos, exigindo uma nova prática: “Atendei o direito do órfão e pleiteai a causa das viúvas” (Isaías 1,17). Acusam diretamente o estado de cumplicidade com a anarquia junto aos tribunais (Isaías 1,23). A monarquia há muito esquecera a defesa dos pequenos: buscava recompensas, aceitava subornos e encobria os desmandos dos poderosos (Isaías 10,1-2). A corrupção da justiça protegia os que planejavam abusos, os que necessitavam da lei tornavam-se desprotegidos, e o culto era usado para encobrir a injustiça (Jeremias 7).
Da mesma forma, Jesus Cristo, o filho de Deus, dá atenção especial justamente às pessoas que viviam à margem da ordem vigente na sua época: pecadores, mulheres, crianças, ignorantes da Lei, em suma, os que eram considerados pecadores e impuros. Sua mensagem sobre o reino de Deus, interpeladora e cheia de esperança, significa uma mudança nas suas condições reais de vida. Ele chama de felizes os pobres, os que choram, sofrem e são perseguidos por causa da justiça, pessoas que estavam excluídas do bem viver. Jesus denuncia também o uso ideológico da Lei que legitimava a separação entre as pessoas. Na sua época, as pessoas que se consideravam justas e puras diante de Deus não raramente coincidiam com os representantes dos grupos dominantes da sociedade. Os doentes, os fracos, mulheres e crianças eram classificados como pecadores e impuros, ou seja, eram vistos como pessoas que estavam numa situação irregular diante de Deus, o que resultava na sua exclusão das várias esferas da sociedade. Estas pessoas eram destinatárias e protagonistas do reino de Deus e Jesus, ao colocar-se ao seu lado e manter comunhão com elas, derruba as barreiras erguidas por uma sociedade estratificada e marginalizadora. Para libertá-las, Jesus conscientiza-as do seu valor diante de Deus, libertando-as para a sua própria identidade. Ele reivindica para a sua atuação a presença do reino do Deus, uma contra realidade oposta à realidade experimentada no mundo. Sua prática do reino, enquanto interrupção da alienação dá voz àqueles que não podiam falar, ajuda para a articulação própria àqueles que haviam sido emudecidos.
Nos relatos dos encontros de Jesus com as mulheres notamos também a mesma prática de misericórdia. Estes relatos foram transmitidos a partir de uma perspectiva que não é propriamente dessas mulheres, mas as suas vozes de resistência que podem ser recuperadas nas fissuras dos textos oferecem sua visão e interpretação do ministério de Jesus e do anúncio do reino que toma forma na restauração de pessoas em geral esmagadas pela dor e sofrimento. O protagonismo das mulheres no movimento de Jesus e nas novas comunidades que foram criadas é evidente. As mulheres seguiam a Jesus, foram testemunhas dos seus ensinamentos e ações (Marcos 15,40-41; Lucas 8,1-3) e integradas na nova família do povo de Deus com pleno direito. Celebra-se também sua lealdade, autenticidade e permanência, sua iniciativa e audácia, sua palavra e diaconia no novo grupo e seu poder relacional. Suas ações e palavras, expressão de pertença ao povo de Deus, simbolizam a reconfiguração do espaço cotidiano, em especial a casa, como o espaço imaginado para o novo grupo. Destaca-se também o valor pessoal das mulheres, sua luta para conseguir uma vida plena e integrada, os desejos que ultrapassam os limites impostos por uma sociedade androcêntrica e patriarcal e a memória que incomoda, pois questiona e empodera para uma liberdade maior e criatividade na vivência de um serviço mais amplo e integrador nas comunidades e fronteiras do mundo de então.
A criação de novas comunidades como espaço de solidariedade, como prática de justiça, de solidariedade e de interrupção da violência ocupa um lugar importante na mensagem do apóstolo Paulo, cuja compreensão de que o reino de Deus irrompeu na morte e ressurreição de Jesus Cristo, um acontecimento que desvela o mistério da era vindoura e torna possível o cumprimento da promessa, conduz à declaração de que Ele é o fundamento da identidade e unidade das comunidades que surgiram a partir da pregação da “palavra da cruz” (1 Coríntios 1,18-25). Em Cristo “não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher; pois todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gálatas 3.28). Não são os critérios distintivos de raça, etnia, gênero e classe social, próprios da cultura greco-romana que definem a identidade e pertença à comunidade de fé, mas o poder da palavra da cruz: “Vede, pois, quem sois, irmãos, vós que recebestes o chamado de Deus; não há entre vós muitos sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos de família prestigiosa. Mas o que é loucura no mundo, Deus escolheu para confundir os sábios; e o que é fraqueza no mundo, Deus escolheu para confundir o que é forte; e, o que no mundo é vil e desprezado, o que não é, Deus escolheu para reduzir a nada o que é” (1 Coríntios 1,26-28).
As experiências com o Deus compassivo e misericordioso manifestam-se tanto na história do povo de Israel quanto nas palavras e ações de Jesus Cristo e nas memórias dos seus primeiros seguidores. No início, o Deus compassivo e misericordioso envolve-se no mais profundo do seu ser pela dor e sofrimento de pessoas e grupos vulnerabilizados. O universo inteiro, que é obra de suas mãos e expressão de sua palavra criadora, alegra-se e fortalece-se na ação libertadora de Deus, que responde ao grito do seu povo e o liberta para uma vida de justiça e prática da solidariedade. O reino de Deus que irrompeu na vida e missão de Jesus Cristo indica a reconciliação de todas as coisas, a superação de todos os antagonismos seja entre a humanidade e a natureza, povos e nações, mulheres e homens, gerações e raças. Ao exploramos este tema, descobrimos que ele revela a fonte da missão de Jesus, o Deus a quem Jesus chama Pai, em cujo Espírito proclamava a boa nova de salvação e em cujo nome convocava os homens e mulheres ao arrependimento e à fé. O chamado de Deus ao seu povo envolve uma vida de esperança, de testemunho do reino e da justiça, onde uma vida mais plena é respeitada, onde mulheres e homens vivem uma vida comunitária mais integrada e as instituições da sociedade favorecem aos mais necessitados.


[1] Texto elaborado por Dr.Dr. José Adriano Filho, para construção do documento Politica de Gênero da ONG Diaconia.

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