Quaresma e jejum
A Quaresma é um período
de valorizar as memórias dos tempos bíblicos, em especial o jejum e a oração,
tão importantes para a fé cristã. É um período de ouvir a palavra de Deus com
devoção e compromisso, de recordar o sofrimento e a morte de Jesus Cristo em
favor de todos e de preparar a Páscoa do Senhor. Pode-se afirmar que a Quaresma
tem três objetivos: o memorial, o teológico litúrgico e a atualização.
Como memorial
rememora-se o tempo de deserto: os quarenta anos que o povo hebreu viveu no
deserto após ter sido libertado da escravidão do Egito e ter-se colocado a
caminho da terra prometida. Lembramos também os quarenta dias que Jesus, o Cristo
de Deus, passou “no deserto”, preparando-se para enfrentar as tentações, a fim
de vencer o sofrimento e a morte e ressuscitar para a vida eterna com Deus. Em
sua dimensão teológico-litúrgica, a Quaresma representa um tempo especial
(quarenta dias) para dedicar-se à oração, ao jejum e à penitência, que são
auxílios pedagógicos para o sincero arrependimento e a correção de vida. A
celebração da Quaresma em toda a sua riqueza litúrgica e profundidade teológica
também levará a uma autêntica celebração da Páscoa.
A dimensão da
atualização convida cada pessoa a “tomar a sua cruz e seguir a Jesus” para que
a Quaresma tenha o seu ápice na
celebração da ressurreição de Cristo. A Páscoa representa a passagem que nos
conduz “do erro para a verdade, do pecado para a retidão, da morte para a vida”
(Livro de Oração Comum, p. 76). Renovamos, assim, a nossa fé na futura
ressurreição dos mortos, pois a ressurreição de Cristo é o penhor e a garantia
da nossa ressurreição, porque “se Cristo não ressuscitou não temos nada para
anunciar e vocês não têm nada para crer” (1 Co 15,12ss).
A Quaresma é, portanto,
o período em que refazemos a viagem final de Jesus a Jerusalém que desemboca em
sua paixão e morte: seu ato derradeiro de amor por nós. Por isso tudo
refletimos, oramos e jejuamos.
Além disso, desde os
primórdios da Igreja cristã, uma maneira especial de preparar-se para a Páscoa,
durante a Quaresma, é o jejum. A prática
do jejum é, na verdade, um costume muito antigo praticado em muitas religiões.
No Antigo Testamento, inúmeros textos mostram que o jejum era uma prática
bastante comum, realizada em diversas ocasiões e com vários objetivos, tais
como:
Como
confissão de pecado: 1Sm 7,3-6; Ne 9,1-3; Jl 2,12-13; Jn 3,5-9
Para
humilhar-se diante de Deus: 1Rs 21,27-29
Em
situações de profunda tristeza e luto: Ne 1,1-4; 1Sm 31,13, 2Sm 1,11-12;
12,15-23; Sl 135,13-14
Para
buscar orientação e ajuda divina: Ed 8,21-23; 2Cr 20,1-4; 2Sm 12,15-23 e Et
4,6.
Mas a religião
ritualizada oficial deturpou, com o decorrer do tempo, o autêntico valor do
jejum, de modo que os profetas tiveram que denunciar certa prática do jejum
como sendo hipocrisia. O verdadeiro sentido do jejum se havia desvirtuado.
Encontramos críticas proféticas bastante duras, por exemplo, em Is 58,3-4 e Jr
4,11-12. O jejum se havia tornado um gesto automático sem nenhum significado
espiritual, um ritual sem vida, uma lei a ser cumprida.
Textos do Novo
Testamento nos revelam que também Jesus criticava certas práticas impostas por
escribas e fariseus, quando essas práticas se haviam transformado em mera
repetição de ritos que escondiam a face amorosa e misericordiosa de Deus (Mt
9,13; Mc 7,1-23). Jesus não queria que o povo vivesse somente para cumprir as
pesadas leis impostas por escribas e fariseus (Mt 23,4; Mc 2,27; Lc 13,15-17).
Embora criticasse o
ritualismo, o próprio Jesus não deixou de praticar o jejum, como durante os 40
dias no deserto (Mt 4,2). Mas ele não insistiu em que seus discípulos o
fizessem. Ao realizar o jejum, Jesus tampouco repetiu os gestos costumeiros, ou
seja: não lavar o rosto nem alinhar os cabelos, cobrir-se de cinza, etc. Antes,
ele ensinou que o jejum não deve ter o objetivo de impressionar os outros (Mt
6,16-18); ele deve ser, pelo contrário, um momento de comunhão com Deus e vir
acompanhado de oração.
Quando os discípulos de
João e os fariseus quiseram saber por que Jesus não impunha o jejum aos seus
discípulos (Mt 9,14-15), ele responde, em forma de pergunta retórica, que
quando o noivo está na festa, os convidados não necessitam jejuar. Mas virá a hora
em que o noivo terá que partir; aí, então, se quiserem, poderão jejuar.
A igreja cristã não tem
por objetivo restaurar uma religiosidade repressiva nem insistir na prática de
um mero ritual ou no cumprimento de uma lei. Mas creio que, no atual contexto, é
importante lançar um desafio: Que tal retomarmos a prática do jejum como gesto
de preparação para a Páscoa? Um gesto com o qual podemos expressar que somos
pequenos e dependentes de Deus? Torna-se cada vez mais importante, em nossa
sociedade agitada, termos um período de autoconhecimento, purificação, busca de
equilíbrio e crescimento espiritual. Do desafio faz parte buscar um motivo pelo
qual gostaríamos de fazer um jejum.
Existem pessoas que aproveitam o período da Quaresma para abster-se de
consumo de algo: alguns decidem abster-se do consumo de carne, outros de
bebidas alcoólicas, outros de televisão. Também há pessoas que deixam de fazer,
durante o período, uma das refeições diárias, destinando o valor “poupado” para
a compra de alimentos para uma instituição que preste serviço social aos mais
pobres. Certamente ainda há outros bons motivos para jejuar no âmbito da
Igreja.
Na quaresma Deus nos
prepara para vivermos mais uma vez a experiência da páscoa, atualizando-a em
nossas vidas e experimentando o poder de sua ressurreição sobre a morte que nos
rodeia. Como cristãs e cristãos somos chamad@s, na época da Quaresma, a
caminhar, junto com Jesus, o caminho na direção da cruz e da Páscoa. Isso
significa que temos que encarar tudo aquilo que pode separar-nos do amor de
Deus e da vida em solidariedade e o jejum é uma possibilidade de ir ao encontro
desse chamado.
A todos e todas uma
abençoada época de Quaresma!
Sônia
Gomes Mota, Pastora da IPU
Odete Liber de AAdriano - teóloga e pastora
Bibliografia:
CALVANI, Carlos Eduardo
B. Entre o púlpito e a universidade: sermões de um professor de teologia. São
Paulo: ASTE, 2006.
MESTERS, Carlos. A
prática do jejum. Liturgia diária. www.freicarlosmesters.com.br. Acesso dia 31
de janeiro às 12h e 30 min.
WHITE. F. James. Introdução ao culto cristão. 2. ed. São
Leopoldo: Sinodal, 1997.