segunda-feira, 10 de junho de 2013

Mulheres e poder



 MULHERES E PODER

As securas do poder

O poder, na vida da maioria das mulheres, tem acontecido como uma experiência de exclusão e de dominação. Isto se dá pelo fato de que o poder é exercido, em seu sentido geral, como possibilidade de impor os próprios interesses, postura que é permitida e legitimada num sistema patriarcal.*** Nesta estruturação, as mulheres são relegadas ao âmbito doméstico, onde normalmente as relações de poder que circulam são restritas às questões de família, de educação de filhos e filhas, de reprodução. As esferas de poder que culturalmente têm sido espaço das mulheres estão ligadas com assuntos que não são considerados incisivos nas grandes temáticas que movem a história, pois esta é lida a partir do mundo público.
Esta é a realidade cotidiana da maioria das mulheres. Esta está marcada por uma formação de conceitos morais cristãos que são aprendidos na família, na escola ou nas ruas, mas de uma maneira especial, nas igrejas. Estas idéias fundamentam uma forma de poder que se constrói e se experimenta desigual. Para efetuar transformações nestas concepções fixas é preciso que um processo de desconstrução seja desencadeado. Na realidade, então, é preciso “desempoderar” primeiro. Faz-se necessário um movimento de destituir poder, de desfazer e de fazer movimentar/circular o poder.

Para as mulheres, articular a voz, poder dizer e nomear as suas experiências é um ato de poder. Falar sobre as experiências, verbalizar o cotidiano como espaço de poder é um primeiro passo na construção de relações distintas entre os gêneros. A realidade nas igrejas é que a maioria de seus fiéis são mulheres. Contudo, neste espaço, se experimenta um discurso sobre as mulheres, uma palavra dita em lugar das mulheres. Uma fala moldada pelo falo, pelo poder androcêntrico e masculino. Uma palavra que quer normalizar e enquadrar, por isso é autoritária e excludente.  Estas experiências revelam as securas, as amarguras e as desilusões com esta forma de exercer o poder. Muitas mulheres se vêem envolvidas nesta dinâmica de exercer o poder. Muitas vezes o fazem por insegurança, por necessidade de aprovação, por se sentirem bem nos espaços concedidos pelos homens em suas estruturas patriarcais. Contudo, outras possibilidades jorram ao encarar o poder como relação ou como habilidade.
O fator de complicação não está no acesso do poder, mas na forma de sua concentração. Feministas propõem outras abordagens em relação ao poder. Há diversas formas de poder: um poder sobre, que está baseado na dominação e no controle; mas, há um poder desde-dentro, que se configura nas inter-relações, ou um poder-com, que se experimenta nas redes de relações sociais. O poder e a resistência andam juntos. A partir de ações empoderadas se criam novas realidades, são transformadas as situações de dor e tristeza.

Um enfoque mais amplo, que resgata os poderes das mulheres, pode ajudar a redirecionar as formas de discutir os papéis masculinos e femininos construídos cultural e socialmente e que permitem o uso de qualquer tipo de violência, seja sexual, física ou psicológica. O poder, enquanto relação, é dinâmico e em movimento. A condição de vítima da mulher se dá enquanto é ela quem sofre a violência. Contudo, na abordagem da situação e do contexto da violência, busca-se contornar um acercamento que vitimize a mulher, que a tome como objeto, obviando sua condição de sujeito. Uma aproximação que unicamente vê a mulher como vítima faz dela um ser passivo, incapaz de decidir e dar rumo a sua vida e de estabelecer resistências. Neste sentido, entender o poder entrelaçado nas redes de relações, ajuda a perceber as pessoas envolvidas nestas redes como sujeitos das ações e não unicamente como vítimas.


A mulher, o balde e o poder

Uma história que sempre me impressiona nesta discussão de poderes e acessos e não acessos é o texto de Jo 4, da samaritana que encontra Jesus e juntos estabelecem um diálogo teológico profundo. Este texto aponta para diversas rupturas em questões de poder. Uma ruptura que quero destacar aqui é a que Jesus entra em território da mulher, se aproxima de um poço, que é outro espaço das mulheres. Naqueles dias, e ainda hoje, as mulheres são responsáveis em providenciar a água. Cisternas, poços e fontes de água representam para as mulheres a extensão do mundo privado para dentro do mundo público. As mulheres conhecem este espaço e as regras que orientam o seu uso (Gn 21,19; 24,11-17). É este espaço que Jesus adentra. É um espaço da mulher, da samaritana. É sua terra. Por isso, ele pede água. É ela quem tem o instrumental de acesso à água: o balde. Por isso, ela estranha quando ele lhe oferece água. “Senhor, tu não tens com o que tirar, e o poço é fundo, onde, pois, tens a água viva?” (v.11). Esta fala demonstra um saber, um conhecimento em assuntos de poços e como se tira água. O instrumental está nas mãos dela, e ela faz questão de interrogar aquele homem que lhe quer oferecer algo que ela tem como conseguir.  É este movimento que quero destacar para discutir relações de poder. O poder não se dá, não se concede, não se permite. O poder vem das relações e vem de dentro. O poder está nas mãos da samaritana, quando ela questiona e discute sobre o seu saber com Jesus. O poder está com Jesus quando ele a questiona perguntando por outras águas que saciam outras sedes. Jesus não dá poder a ela. Ambos estabelecem relações nas quais o poder circula e se movimenta. Esta é uma perspectiva que é poderosa, pois estabelece relações que pressupõem sujeitos ativos e participantes na trama social.

Encharcando-se de poder

Esta perspectiva de abordagem do texto da samaritana que encontra Jesus no poço permite a discussão da temática do poder a partir de elementos que conformam a realidade cotidiana das pessoas. Esta é a perspectiva da Teologia Feminista que se constrói a partir da premissa de tomar as experiências cotidianas como lugar de reflexão teológica. Perguntas pelos novos paradigmas como o cotidiano, a experiência, a subjetividade, são tópicos que ensaiam uma outra proposta de construção do saber e do poder. Apontam para caminhos metodológicos que redefinem o poder como uma dinâmica que permeia as relações pessoais e sociais.
Esta é uma postura que concebe o poder não unicamente a partir de suas ações coercitivas e negativas, mas resgata os seus elementos positivos e produtivos. “O poder não apenas nega, impede, coíbe, mas também “faz”, produz, incita,”****, conforme as palavras de Guacira Lopes Louro. Essa forma de exercer o poder é explicitar que temos acesso a mecanismos de poder. Implica não assumir a posição de vítimas. Como mulheres estamos inseridas nas tramas de poder que conformam a sociedade e as instituições que nela se estruturam. O que passa é que muitas vezes, como sujeitos sociais marginalizados, as mulheres não têm acesso ao poder de mando, de definir conceituações e de exercer autoridade.  Entender que o poder é dinâmico e se mistura nas nossas relações ajuda no processo de tornar as mulheres sujeitos de suas ações. Tornar-se sujeito implica assumir as responsabilidades e nomear a sua existência. É o que se tem definido de processo de empoderamento das mulheres. Nesta dinamicidade não se pode afirmar que, uma vez conquistado, o poder está com as mulheres. Assumir espaços de poder e de significação de poder requer um exercício cotidiano de avaliação, de reflexão e de abertura. Esta postura impede que haja cristalizações nos espaços de poder.

Os papéis e as construções de gênero são produzidos nas e pelas relações de poder. Aquilo que as sociedades, através de suas convenções culturais, constroem, para definir os entendimentos acerca do que se entende por feminino e masculino, insere-se nas dinâmicas de distribuição de poder. Na sociedade patriarcal, androcêntrica (centrada num modelo hegemônico e idealizado de homem), as concepções em torno do masculino são a regra que normatiza e delimita os gêneros. A norma é definida pela masculinidade hegemônica. Tudo o que não se encaixa nesta máxima é a exceção, é o outro, é feminino, e, portanto, inferior, marginalizado e excluído.

Contudo, na dinâmica de entender o poder como força que se constitui nestas relações, esta posição de ser outro que as mulheres ocupam não está destituída de mecanismos de poder. Em outras palavras, ter um espaço delimitado, que normalmente é o doméstico, não quer dizer que as mulheres não possam transformar as situações de não-poder aparente, nos moldes da oficialidade, em situações de poder. É um poder que se conforma na resistência, nas entrelinhas e nas margens, mas é poder. Se não, não poderíamos analisar as resistências das mulheres como força que as mantém vivas.  O que estou propondo é que os mecanismos de análise tradicional que normalmente são usados para “medir” o poder sejam desmantelados. Se seguimos no esquema tradicional de ver quem ocupa os espaços, normalmente imbuídos de poder, constatamos que são os homens, ou algumas mulheres, que recebem a permissão patriarcal de acessar o poder. Já temos, contudo, ensaios de poder de forma diferenciada. Um poder que foi conquistado pela organização, pela pressão, pela resistência, muitas vezes silenciosa de tantas mulheres, muitas anônimas. É esta situação de poder que quero destacar. É o poder que se dinamiza, pois assume formas e jeitos diferenciados. Não unicamente porque é exercido por mulheres, pois isto reforçaria uma visão ingênua e essencialista de que as mulheres são mais sensíveis e democráticas. Mas porque a história de resistência, que se inscreve nos corpos das mulheres, imprime uma marca de exercício de poder que se molda na luta, nos espaços pequenos, nas brechas e fendas, às margens. Esta é a idéia de poder que se localiza não unicamente no poço, a partir da história da samaritana, mas que se localiza no balde, na caneca, na concha, pois é o instrumento que se usa para tirar a água. O instrumental colocado a serviço e socializado permite o acesso ao poço a mais pessoas. O saber socializado, de como se usa o instrumental, colabora no processo de apropriação e democratização dos espaços de poder.


Texto publicado no Boletim Por Trás da Palavra, n. 146, jan.-fev./2004.
**Elaine Neuenfeldt é coordenadora da Dimensão de Gênero do CEBI e diretora adjunta da mesma organização. Pastora Luterana, é titular da cadeira de Teologia Feminista na EST – Escola Superior de Teologia, em São Leopoldo-RS. ***MAASSEN,Monika. Poder/Domínio. In. GÖSSMANN, Elisabeth, et alli (Org.). Dicionário de Teologia Feminista. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 396. ****LOPES LOURO, Guacira. Gênero, sexualidade e educação. Uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 40.

Meu caminhar


O ver, agir e julgar está atrelado a um modo arraigado na fé bíblica, pois a fé de Israel era e continua sendo em nossos dias, o ponto de partida do Êxodo 3. O grito de um povo que sofria e que clamava por justiça como nos dias atuais. E o mesmo Deus “viu” e vê (a opressão), “escutou” e escuta (os clamores), “conheceu” e continua conhecendo os sofrimentos e “agiu”, age libertando[1]. Assim, entende-se por liderança como o processo de conduzir as ações e influenciar o comportamento e a mentalidade  de outras pessoas, pois liderança é  uma escolha, uma relação, uma técnica, uma arte.

O VER se entende, não como um  mero falar “sobre” uma realidade, senão como se a vê, se a entende e se a  assume. O  JULGAR,  avalia  pessoas, estruturas e culturas no hoje da história,  recebe-as  no  que tem de verdade e bem; convida a enriquecer-se invita a enriquecer-se com cada realidade conhecida, estudada, discernida. O AGIR abriga e modifica; reconhece, depura e acaba/completa.

Nesse sentido o ver é mergulhar na realidade, incluir-se, encarnar-se, tendo como modelo Jesus Cristo que se encarnou, viveu a vida dos seres humanos e assumiu as nossas fraquezas e limitações, ajudando-nos a superá-las. Para abordar a realidade, é preciso partir dos campos principais: econômico, político, social, ideológico e religioso. E isso deve se fazer presente na liderança cristã, na igreja. Vendo, percebendo suas necessidades e agindo.

O JULGAR é desenvolver novos paradigmas. O julgar tem o sentido de iluminar, de criticar, de confrontar a realidade à luz da ótica cristã, na fidelidade a Deus, aos irmãos/irmãs e à vida. Trata-se de analisar as causas e consequências dos fatos; questionar criticamente o que se vê; discernir o que está ou não a serviço da vida, a serviço do reino de Deus. O ‘julgar’ exige conhecimento da realidade humana e social; discernimento crítico à luz da fé e do evangelho; escuta da palavra que se revela nos acontecimentos; conhecimento da doutrina/costumes da Igreja; capacidade de superar preconceitos. Cada pessoa tem uma parte da verdade e na transformação da realidade constatada. Assim, o ‘julgar’ na vida cristã tem como critérios o respeito à vida e à dignidade humana, o bom senso e os valores evangélicos (que nada mais é o que a Bíblia nos diz).

E finalmente o ‘AGIR’ é transformar a realidade. O ‘agir’ não é fazer coisas, mas é ação transformadora da realidade constatada. O agir é ter uma nova atitude diante da vida; é uma transformação pessoal e integral; tem consequência na sociedade; é o resultado do ‘ver’ e ‘julgar’ que compromete toda igreja (ninguém na igreja pode dizer que nada sabe fazer). O ‘agir’ tem momentos oportunos para acontecer. É ter paciência, evitar a acomodação, mas sem cair no ativismo, lembrar que, através da nossa ação, Deus age na história. Afinal, devemos deixar “Deus ser Deus”! Isso é o mais importante para minha vida e é o que eu posso fazer (o que posso fazer é orar, pregar, interceder, dar exemplo, o restante é com Deus, com o Espírito Santo).

E com isso tudo, pode-se dizer que a liderança não tem absolutamente nada a ver com popularidade barata nem boa aparência, mas sim grandeza do caráter, determinação e persuasão. Isto tudo passa por ser paixão. A paixão por “ser”  um líder que ganha poder por si próprio, talhado para o comando quer na conduta de todo o grupo, quer na orientação de um novo caminho com Cristo. Aconteça o que acontecer, faz parte do papel do líder responsável permanecer firme e constante nos seus propósitos.

Com o curso, percebe-se que ser líder é ser motivador, ter responsabilidade, ser um apaixonado pelo que faz e principalmente, como cristã, ser uma apaixonada pelo ser humano. Essas são as contribuições para meu ministério e vida. E concluo com o poema de Mário Quintana – Quem sabe um dia:

Sentir primeiro, pensar depois

Perdoar primeiro, julgar depois

Amar primeiro, educar depois

Esquecer primeiro, aprender depois

Libertar primeiro, ensinar depois

Alimentar primeiro, cantar depois

Possuir primeiro, contemplar depois

Agir primeiro, julgar depois

Dar primeiro, pedir depois

Fazer primeiro, mandar depois

Navegar primeiro, aportar depois

Viver primeiro, morrer depois.

 




[1] Conforme RAMIRES, Carlos Ayala. America Latina, ver-juzgar-actuar un método de estar en la realidad, Adital sábado 19 Mayo 2007.

Quem sabe um dia


Quem sabe um dia - Mário Quintana

Sentir primeiro, pensar depois
Perdoar primeiro, julgar depois
Amar primeiro, educar depois
Esquecer primeiro, aprender depois
Libertar primeiro, ensinar depois
Alimentar primeiro, cantar depois
Possuir primeiro, contemplar depois
Agir primeiro, julgar depois
Dar primeiro, pedir depois
Fazer primeiro, mandar depois
Navegar primeiro, aportar depois
Viver primeiro, morrer depois.

terça-feira, 4 de junho de 2013

1 PEDRO 1.17-23

LUCAS 24.13-35
ATOS 2.14a, 36-41
1 PEDRO 1.17-23
Odete Liber Adriano
proclamar libertacao35
1 Introdução
Os textos propostos para o terceiro Domingo da Páscoa assinalam a importância da ressurreição de Jesus para a fé cristã, além de trazer a ideia de pertença, de inclusão na promessa de Deus, de comunhão e proteção mútua. Lucas 24.13-35, a narrativa do encontro do Cristo ressuscitado com os discípulos no caminho de Emaús, mostra que os discípulos estavam tristes e desanimados
(v. 17), frustrados e decepcionados com a religião de sua época (v. 20), desiludidos quanto às esperanças que haviam depositado em Jesus (v. 21), céticos quanto aos testemunhos que ouviram de outros (v. 22-24).

Atos 2.14a,36-41, a parte final do sermão de Pedro no dia de Pentecostes, cujo tema é a ressurreição de Jesus, afirma que Deus fez daquele Jesus Nazareno humilhado na cruz o Senhor e Cristo. Essa afirmação de fé é obra do Espírito Santo, conforme o apóstolo Paulo. “Messias” ou “Cristo” significa o rei ungido, que traz o reinado de Deus. A afirmação a respeito do Crucificado/Ressuscitado prepara o caminho para o responso dos ouvintes e leitores, que consiste em voltar para Deus e ser batizado em nome de Jesus.

1 Pedro 1.17-23 assinala o senso de comunidade, de comunhão, acolhida e proteção mútua. Os exilados a quem Pedro se dirige são “povo de Deus” pela ressurreição de Cristo e reconhecem que Deus não faz acepção de pessoas, pois os escolheu. No mundo em que os destinatários da carta sofriam acusações falsas e injúrias sem proteção da lei, ter um Pai que não faz acepção e que, na cruz de Jesus, foi solidário com os sofredores e com os que não têm lugar, era e é uma porta aberta para a edificação de um povo que vive em relações fraternas, igualitárias e de hospitalidade.

2 Exegese
1 Pedro 1.17-23 é considerado pelos comentaristas como parte de uma seção maior que se estende de 1 Pedro 1.13-2.10, chamada “renascimento e nova conduta”, “o novo status dos cristãos e suas consequências” ou “a conduta moral como dom e a tarefa do novo nascimento”. 1 Pedro relembra aos cristãos o dom que receberam (1.3-13), e o desenvolvimento da carta extrai as consequências das declarações apresentadas. A esperança futura não está desvinculada do presente. Assim, a seção, que é tipicamente de admoestação, apresenta seções indicativas
e imperativas: as seções indicativas fundamentam as imperativas, quase como explicações do porquê de assim proceder.

O texto continua o tema da santidade, iniciado em 1.13. A salvação em Cristo deve conduzir à santidade; a salvação, “doação do Espírito de santidade”, deve expressar-se em santidade vivida. O fundamento da salvação é a morte de Cristo na cruz (1.19), o sangue derramado para nos resgatar de um modo de vida anterior fora da esfera divina. O v. 17, que assinala a transição para a sequência de indicativos, afirma que os leitores podem chamar a Deus de Pai. O nome de Deus não é mencionado, segundo o costume judeu, mas Ele é designado por um de seus atributos: “Aquele que julga sem acepção de pessoas”. Ao assinalar a responsabilidade de cada um por suas obras, o texto não deve ser entendido no sentido de uma intransigente justiça das obras. Paulo fala da mesma forma. Exige a fé, que se manifesta nas obras do amor, mas exclui a vanglória das obras. 1 Pedro fala também, como complemento e tensão dialética, da necessidade da graça.
Depois da afirmação de que os cristãos são peregrinos na diáspora (1.1), o texto acrescenta: “Portai-vos com temor durante o tempo da vossa peregrinação” (1.17). 1 Pedro fala repetidamente sobre a peregrinação do povo de Deus na terra, em especial devido ao influxo das expressões tipológicas do Antigo Testamento.

O temor do juízo, no início do texto, tornou-se agora conhecimento, cheio de temor reverencial. Aquele que foi redimido sabe que sua situação anterior era de desespero e que sua libertação custou o sangue do Cordeiro. Esse sentimento se manifesta na gratidão e alegria, mas também no temor de Deus, que determina cada momento de sua vida. Assim, ao lado do compromisso com uma nova conduta de vida por meio de Deus, o Juiz, surge a fundamentação para tal pela lembrança da redenção oferecida.

O resgate aconteceu “não mediante coisas corruptíveis”. Não aconteceu por meio de “prata ou ouro”, bens que potencializam a avareza, usualmente utilizados para pagamento de resgate no comércio. A fixação no que é passageiro não possibilita a liberdade da futilidade dessa existência. Para que isso ocorra, a doação de uma nova vida é necessária. Os cristãos “foram comprados” dessa fútil existência, de modo que o texto, referindo-se à ação libertadora de Deus na história, deixa claro que o resgate por Deus sinaliza uma mudança de propriedade, além da libertação das relações vividas anteriormente, compreendidas como escravidão.

O resgate através do sangue de Jesus é comparado em seu efeito redentor com o cordeiro sacrificial do Antigo Testamento. O sacrifício, muito mais do que mero desempenho humano substitutivo, é a reconciliação com Deus. Significa, no grande dia da reconciliação, a doação vicária da vida, possibilitada por Deus, a fim de que possa novamente voltar a estar no meio de seu povo, cuja vida havia sido arruinada. É também a doação de vida de Jesus Cristo. Não foram os seres humanos que se reconciliaram com Deus, mas Deus os reconciliou consigo mesmo,
não só a eles, mas a todo o mundo, através de Jesus (2Co 5.19). A redenção aconteceu segundo o plano salvífico de Deus, “concebido antes da fundação do mundo, oculto durante algum tempo, mas agora revelado”. Cristo é o fundamento da fé, é aquele que Deus ressuscitou dos mortos e glorificou: Ele preexistia antes de todas as coisas, foi revelado nos últimos tempos, ressuscitou dentre os mortos e foi exaltado nas alturas.

A santificação, como “filhos da obediência”, requerida antes (1.14) é agora retomada na solicitação de purificar as almas na “obediência à verdade”. “Tendo purificado as vossas almas” destaca um fato passado que tem relevância para o presente. Ao aderirem à verdade do evangelho, reconhecendo sua pecaminosidade e ignorância e aceitando em fé o resgate propiciado pelo sacrifício de Cristo na cruz (1.19-20), as suas vidas foram purificadas. Foram também “resgatados do individualismo egoísta que caracteriza a existência humana no pecado” e colocados num “novo tipo de ‘existência corporativa’, como membros do povo de Deus, onde cada um não deve ter em vista ‘o que é propriamente seu, senão também cada qual o que é dos outros’” (Fp 2.4). O propósito real da nova vida em Cristo é o amor fraternal. Originalmente, amor estava relacionado com Cristo, mas agora é o amor ao próximo que, como consequência da fé na salvação, deve determinar a maneira de viver de todos aqueles que creem. O fundamento do mandamento do amor ocorre pela renovação da referência à “regeneração”. Apesar do esforço próprio, necessário para um comportamento renovado, a nova existência não se fundamenta na ação própria, mas no cuidado divino antecedente, responsável pela renovação do ser humano. Dessa forma, fica novamente acentuada a proveniência “não-mundana” do meio de salvação redentor, nesse caso a antítese semente “corruptível” e a palavra de Deus, “incorruptível, viva e permanente”.
3 Meditação
Os cristãos foram resgatados de um modo fútil de vida, herdado de seus antepassados, “não mediante coisas corruptíveis”, isto é, “prata ou ouro”, mas através do “precioso sangue, como de cordeiro sem defeito e sem mácula, o sangue e Cristo”. Duas contraposições destacam-se no texto: o sangue de Cristo com os bens terrenos; o metal precioso “corruptível” com o sangue de Cristo como o “cordeiro sacrificial, sem mancha e sem mácula”. O evento redentor assinalado pela obra de Cristo é, portanto, apresentado em oposição à esfera terrena da transitoriedade.
Dessa forma, a vida humana redimida passa a ter um valor excepcional, ou seja, ela é envolta pela ação salvífica de Deus através de Jesus Cristo. A vida humana é medida a partir da morte de Jesus Cristo. Nenhum esforço ou sacrifício humano se iguala ao sacrifício que Deus realizou através de seu Filho. Ele demonstrou em atos e palavras todo o seu amor por nós, quando veio ao nosso encontro, “assumindo a forma humana e tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz” (Fp 2.7-8). Os cristãos foram “resgatados do individualismo egoísta que caracteriza a existência humana no pecado” e colocados num “novo tipo de ‘existência corporativa’”, razão por que cada um não deve ter em vista “o que é propriamente seu, senão também cada qual o que é dos outros” (Fp 2.4). O propósito real da nova vida em Cristo é o amor fraternal. O amor, originalmente relacionado com Cristo, é agora amor ao próximo, o qual, como consequência da fé na salvação, determina a maneira de viver de todos os que creem.

Nesse contexto, destaca-se a importância do v. 17: “Ora, se invocais como Pai aquele que sem acepção de pessoas julga segundo as obras de cada um, portai- vos com temor durante o tempo a vossa peregrinação”. Temor não é simplesmente um sentimento de medo, mas o reconhecimento amoroso da presença do Deus justo. Ademais, para não arrefecer os ânimos no empenho por uma vida de justiça, a “verdadeira e mais profunda medição dos valores tem de ser posta na perspectiva do eterno que irrompe em Cristo, pois na sua gratuidade Ele põe em cheque as nossas falsas perspectivas e valores”, nossos sonhos vãos e fúteis.

Todo cristão/ã é chamado a construir sua vida numa nova base: a realidade de Deus. Isso acontece todos os dias, pois todo dia é tempo de renovação e conversão. A tarefa cristã é testemunhar os feitos de Deus em suas vidas, dia a dia. Afinal, Deus é nosso alicerce, e em Jesus somos fortalecidos constantemente. Com Ele nossa esperança não se perde, nossa fé é fortalecida e, como comunidade de fé, nossos sonhos e angústias nos unem e nos fortalecem, pois não andamos sós, somos corpo! O preço dessa nova forma de relações foi alto. O texto deixa claro que a constituição do povo de Deus não está baseada em coisas perecíveis, como prata ou ouro, “mas pelo precioso sangue, como de cordeiro sem defeito e sem mácula, o sangue de Cristo, conhecido, com efeito, antes da fundação do mundo, porém manifestado no fim dos tempos, por amor de vós” (v.18-19). O importante a destacar aqui não é o sangue, mas o que ele representa – o dinamismo da vida. O sangue de Jesus derramado no calvário não pode ter sido em vão. Antes foi “por causa de vós” (v. 20), ou seja, por nossa causa mesmo, nós que hoje afirmamos que somos o povo sacerdotal de Deus.

É importante trazer à memória o sinal batismal do nascimento para a esperança, para o novo em Cristo. O nascer de novo pela palavra deve ser entendido como outra forma de dizer: “vocês oram resgatados”. Páscoa significa mudança de vida. Novas possibilidades de vida, mudança dos valores banais para os valores do reino. Da tristeza para a alegria; da decepção religiosa para a vida em comunidade; de uma visão errada do Cristo a uma visão correta; da morte para a vida. Enfim, somos desafiados a renascer e viver uma nova conduta todos os dias de nossa vida.

4 Imagens para a prédica
Um ramo seco com brotos verdes. O galho seco representa a nossa vida, e s brotos, a esperança e a força que vêm de Cristo. Significa que, mesmo quando achamos que nada é possível, com Ele, o Cristo, sempre é possível recomeçar. É possível, todos os dias, construir e reconstruir uma nova base, um novo alicerce em e com Cristo.
5 Subsídios litúrgicos
Colocar os galhos secos com pequenos brotos à frente da mesa da Eucaristia.
Oração:
Deus, contigo a vida tem um novo valor, porque somos envolvidos/as pela ação salvífica de Deus por meio de Jesus Cristo. Sabemos que nenhum esforço humano se iguala ao sacrifício que realizaste em nosso favor através de Jesus Cristo. Com isso, pela gloriosa ressurreição de Jesus, teu Filho, destruíste a morte e trouxeste à luz a imortalidade. Concede a todos/as nós, que fomos ressuscitados com Ele, que permaneçamos na sua presença e nos alegremos na esperança da glória eterna; por Jesus Cristo, nosso Senhor, que vive e reina contigo, e pelo Espírito Santo, um só Deus, por todo o sempre. Amém!

Confissão comunitária de pecados:
Deus da graça e da verdade, muitas vezes perdemos a ligação contigo e com o próximo. Nós confessamos que, muitas vezes, nos esquecemos de que nosso Senhor Jesus Cristo morreu na cruz e ressuscitou por amor a todos nós. Nós confessamos que, muitas vezes, nos esquecemos dos valores do reino e que o propósito real da nova vida em Cristo é o amor fraternal. Nós confessamos que nos esquecemos de testemunhar os teus feitos em vidas. Apresentamos-te nossa grande culpa e te pedimos perdão. Perdão, Senhor!

Bibliografia
MÜLLER, Ênio R. 1 Pedro: Introdução e contexto. São Paulo: Mundo Cristão/ Vida Nova, 1988.
FELDMEIER, Reinhard. A primeira carta de Pedro: Um comentário exegético teológico. São Leopoldo: Sinodal/Faculdades EST, 2009.