“Vejam só a que ponto chegamos. Agora ele está querendo ser
presidente. Não se enxerga? A começar pelos ancestrais, que não são coisa que
se recomende. Há fortes boatos de descender de uma mulher de costumes frouxos e
suscetível a amores proibidos. O pai, ao que parece,não conseguiu se fixar em
emprego algum e alguns chegam mesmo a descrevê-lo como tendo alma de vagabundo.
É certo que não seria nunca escolhido como operário padrão.E que dizer do lugar
onde nasceu? Estado dos mais atrasados, sotaque típico, crescido em meio à
rudeza dos que não se refinaram para as lides públicas. Podem imaginar o seu
comportamento num banquete? Seria vergonhoso, cotovelos sobre a mesa,
empurrando a comida com o dedão, falando de boca cheia. Seria um vexame
nacional. Acresce o fato de não haver nem mesmo terminado o curso primário, sua
educação formal se restrigindo a ler, escrever e fazer as quatro operações.
Como trabalhador braçal, excelente. Na verdade, ali é o seu lugar. Como
acontece com as pessoas que trabalham muito com o corpo e pouco com a cabeça,
seu corpo se desenvolveu de forma invejável.Testemunhas oculares relatam mesmo
que, em certa ocasião,não vacilou em se valer dos seus músculos para dobrar um
grupo de adversários.
Mas, o que assusta mesmo, é o seu radicalismo em relação às
questões do trabalho, especialmente no campo. Pois não é da iniciativa e do
capital dos patrões que vêm a riqueza do país? E agora este matuto quer colocar
o carro na frente dos bois. Se sua política agrária for colocada em prática é certo
que vamos ter uma convulsão social no País. O nosso sistema de produção vai se
desmantelar, com imprevisíveis consequências sociais. No final, parece que os
empregados tomarão conta de tudo e aos patrões não resta alternativa que deixar
o País. “Love it or leave it”.
Podem guardar seus sorrisos e sua raiva porque isto que
escrevi não é sobre quem vocês estão pensando. É sobre Abraham Lincoln. E o que
eu disse sobre sua vida pode ser encontrado na Enciclopédia Britânica, para
quem quiser conferir. Imaginei como é que a conversa rolaria nas rodinhas das
UDRs, KKKs da época, ante a insólita possibilidade de que um ex-lenhador sem
curso primário viesse a ser o presidente do país. Como se sabe, Lincoln foi
eleito, os escravos libertados, houve uma enorme convulsão social, pois os
donos de escravos se recusaram a aceitar a liberdade dos negros e aqueles que
não se ajustaram cumpriram sua promessa: emigraram. Para onde? Muitos para o
Brasil. E foi assim que nasceram as cidades de Santa Bárbara do Oeste e Americana.
Por que o Brasil? Porque, se não podiam ter escravos lá, poderiam continuar a
ter escravos aqui. Nunca imaginei que esta seria uma boa razão para se optar
pelo Brasil: para se continuar a ter escravos. Mas os tempos mudaram. Mudaram?
Parece que ainda hoje o mesmo horror existe ante a possibilidade de que um
operário venha a ser presidente do País. E as conversas que rolam por aqui não
devem ser muito diferentes das que rolaram por lá. Parece que a história está
cheia de situações parecidas – e é só por isto que podemos aprender dela.
Quem sabe a memória do ex-lenhador que se candidatou a presidente dos Estados
Unidos possa nos ajudar a colocar em perspectiva este fato insólito de um
operário que se candidata à Presidência do Brasil.
Por Rubem Alves*
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