"É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto, como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo..." (Clarice Lispector)
quarta-feira, 23 de janeiro de 2013
segunda-feira, 21 de janeiro de 2013
domingo, 13 de janeiro de 2013
A filosofia de lavar a louça
LUIZ FELIPE PONDE
A filosofia de lavar a louça
Estudar, contemplar, trabalhar. Um ato alimenta o outro, e os três formam o espírito
Fala-se muito de como o "Primeiro Mundo é isso e aquilo". Acho isso papo de vira-lata. Toda vez que você ouvir alguém falando que a Europa "é outra coisa", você está diante de um vira-lata rondando a lata de lixo ...dos outros. A mesma coisa vale para os EUA, ainda que, nesse caso, vira-latas de esquerda jamais elogiem os EUA, mesmo que comprem iPads lá.
Mas independentemente dessa breguice de vira-lata querendo fingir que entende de vinhos, há um detalhe na vida europeia e norte-americana que vale a pena discutir: a vida doméstica e suas tarefas.
Mas, sintomaticamente, os vira-latas nunca falam disso, porque a própria condição de vira-lata os impede de entender ou mesmo enxergar esse detalhe. O sonho do vira-lata é fingir que é llhasa apso e por isso acha que ser um llhasa é desfilar bolsa Prada no JK Iguatemi.
O Brasil é terra de atrasado, corrupto, esculhambado, inculto, novo rico e por aí vai. Tudo isso é verdade. A prova disso é que aqui luxo é ostentação. Suspeito que grande parte do que há de fato de bom na Europa e nos EUA em termos de hábitos e costumes (portanto, estamos falando de moral) se deve ao fato de que nesses lugares as pessoas se movimentam de modo diferente no cotidiano das suas tarefas.
Sempre ouvi os mais velhos dizerem que "o costume de casa vai à praça" e isso é a mais pura verdade. Além de fazerem sexo melhor, suspeito também que os mais velhos entendiam bem melhor do que é essencial, principalmente porque não tinham essa parafernália de ideologia e outros quebrantos bobos como ferramenta de análise do mundo.
Eles observavam a vida sem a presunção de ter descoberto a chave do mundo, como nossos contemporâneos viciados em "teorias de gabinete", como dizia Edmund Burke.
Lembro-me bem que minha filha, chegada à França com cerca de dois anos de idade, chorava porque não podia lavar louça como meu filho, seu irmão, mais velho do que ela nove anos. Isso é sintomático de muitos outros pequenos detalhes: para ela, lavar a louça era parte de ser da família. Meu filho, minha mulher e eu partilhávamos todo o cuidado com a vida cotidiana, inclusive o cuidado com a caçulinha.
Em países como a França, Alemanha, Israel, EUA e outros semelhantes, você é responsável por tudo que acontece na sua casa. Roupa, comida, limpeza, compras, resolução de pequenos problemas logísticos, enfim, da sustentação da vida.
As casas (menos nos EUA, mas ainda assim a ocupação de espaço é diferente da nossa) são menores e mais simples, mesmo que com mais parafernália tecnológica, quando você tem condição de tê-la.
O que me chama atenção em relação às casas não é só seu tamanho, mas a ocupação do espaço. No Brasil temos a famosa sala de visita que, se você "está bem de vida", deve ser completamente inútil e parecer desocupada. Por isso, sempre suspeito que manter uma parte da casa sem uso é signo de vira-lata.
As aristocracias antiga e medieval, as únicas verdadeiras, também não tinham castelos sem uso. Burguês, e aristocracia falida, com "castelo" na zona leste ou nos Jardins é coisa de "wannabe", como dizem meus alunos.
Goethe, em seu maravilhoso "Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister", descreve o que é a casa de um burguês: ter mais coisas do que precisa e não ter uma relação de uso e necessidade real com os objetos da casa.
Este é o caso. Uma sala de visitas imaculada faz você parecer rico o bastante para manter parte da sua casa sem uso e, com isso, você trai sua breguice burguesa. Acho que grande parte de nossas agruras vem do fato de que não lavamos louça com frequência e de que temos cômodos dissociados de nosso cotidiano e necessidades.
Basílio Magno (século 4) criou a regra da vida monástica: estudar, contemplar, trabalhar. Uma atividade alimenta a outra, e as três formam o espírito. A sabedoria monástica é uma das maiores criações do espírito humano.
Entre nós, dar "tudo" para os filhos até os 40 anos de idade é signo de sermos bons pais. E com isso preparamos adultos retardados e com futuras salas de visita cheias de fantasmas de nossa pobreza de espírito.
A filosofia de lavar a louça
Estudar, contemplar, trabalhar. Um ato alimenta o outro, e os três formam o espírito
Fala-se muito de como o "Primeiro Mundo é isso e aquilo". Acho isso papo de vira-lata. Toda vez que você ouvir alguém falando que a Europa "é outra coisa", você está diante de um vira-lata rondando a lata de lixo ...dos outros. A mesma coisa vale para os EUA, ainda que, nesse caso, vira-latas de esquerda jamais elogiem os EUA, mesmo que comprem iPads lá.
Mas independentemente dessa breguice de vira-lata querendo fingir que entende de vinhos, há um detalhe na vida europeia e norte-americana que vale a pena discutir: a vida doméstica e suas tarefas.
Mas, sintomaticamente, os vira-latas nunca falam disso, porque a própria condição de vira-lata os impede de entender ou mesmo enxergar esse detalhe. O sonho do vira-lata é fingir que é llhasa apso e por isso acha que ser um llhasa é desfilar bolsa Prada no JK Iguatemi.
O Brasil é terra de atrasado, corrupto, esculhambado, inculto, novo rico e por aí vai. Tudo isso é verdade. A prova disso é que aqui luxo é ostentação. Suspeito que grande parte do que há de fato de bom na Europa e nos EUA em termos de hábitos e costumes (portanto, estamos falando de moral) se deve ao fato de que nesses lugares as pessoas se movimentam de modo diferente no cotidiano das suas tarefas.
Sempre ouvi os mais velhos dizerem que "o costume de casa vai à praça" e isso é a mais pura verdade. Além de fazerem sexo melhor, suspeito também que os mais velhos entendiam bem melhor do que é essencial, principalmente porque não tinham essa parafernália de ideologia e outros quebrantos bobos como ferramenta de análise do mundo.
Eles observavam a vida sem a presunção de ter descoberto a chave do mundo, como nossos contemporâneos viciados em "teorias de gabinete", como dizia Edmund Burke.
Lembro-me bem que minha filha, chegada à França com cerca de dois anos de idade, chorava porque não podia lavar louça como meu filho, seu irmão, mais velho do que ela nove anos. Isso é sintomático de muitos outros pequenos detalhes: para ela, lavar a louça era parte de ser da família. Meu filho, minha mulher e eu partilhávamos todo o cuidado com a vida cotidiana, inclusive o cuidado com a caçulinha.
Em países como a França, Alemanha, Israel, EUA e outros semelhantes, você é responsável por tudo que acontece na sua casa. Roupa, comida, limpeza, compras, resolução de pequenos problemas logísticos, enfim, da sustentação da vida.
As casas (menos nos EUA, mas ainda assim a ocupação de espaço é diferente da nossa) são menores e mais simples, mesmo que com mais parafernália tecnológica, quando você tem condição de tê-la.
O que me chama atenção em relação às casas não é só seu tamanho, mas a ocupação do espaço. No Brasil temos a famosa sala de visita que, se você "está bem de vida", deve ser completamente inútil e parecer desocupada. Por isso, sempre suspeito que manter uma parte da casa sem uso é signo de vira-lata.
As aristocracias antiga e medieval, as únicas verdadeiras, também não tinham castelos sem uso. Burguês, e aristocracia falida, com "castelo" na zona leste ou nos Jardins é coisa de "wannabe", como dizem meus alunos.
Goethe, em seu maravilhoso "Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister", descreve o que é a casa de um burguês: ter mais coisas do que precisa e não ter uma relação de uso e necessidade real com os objetos da casa.
Este é o caso. Uma sala de visitas imaculada faz você parecer rico o bastante para manter parte da sua casa sem uso e, com isso, você trai sua breguice burguesa. Acho que grande parte de nossas agruras vem do fato de que não lavamos louça com frequência e de que temos cômodos dissociados de nosso cotidiano e necessidades.
Basílio Magno (século 4) criou a regra da vida monástica: estudar, contemplar, trabalhar. Uma atividade alimenta a outra, e as três formam o espírito. A sabedoria monástica é uma das maiores criações do espírito humano.
Entre nós, dar "tudo" para os filhos até os 40 anos de idade é signo de sermos bons pais. E com isso preparamos adultos retardados e com futuras salas de visita cheias de fantasmas de nossa pobreza de espírito.
“…su cadáver estava lleno de mundo” (César Vallejo) - Rubem Alves sobre Richard Shaull
“…su cadáver estava lleno de mundo” (César Vallejo) - Rubem Alves sobre Richard Shaull
Eu era jovem e andava por um caminho plano e seguro. Todos os seus detalhes me haviam sido ensinados. Ele estava todo sinalizado com tabuletas para evitar que alguém se perdesse. Em algumas tabuletas se liam “certezas”. Em outras, “proibições”. Certezas e proibições têm importantes funções psicológicas. As certezas nos dizem que já encontramos a verdade. Quem já encontrou a verdade deixa de procurar. As certezas, então, embalam a inteligência que se põe a dormir. É tranqüilizante saber-se possuidor da verdade. Eu vivia tranqüilo. As proibições, por sua vez, nos dizem o que não se pode fazer. Sabendo-se o que não se pode fazer somos libertados da terrível necessidade de tomar decisões. As decisões são necessárias quando nos defrontamos com uma encruzilhada, bifurcação, dois caminhos à nossa frente. Posso tomar o caminho da direita, posso tomar o caminho da esquerda. Mas não há nenhuma tabuleta indicando qual deles conduz ao fim desejado. Toda encruzilhada nos coloca numa situação de incerteza. E a incerteza produz ansiedade: é preciso decidir, sem saber ao certo… Mas se existe uma tabuleta num dos caminhos com a palavra “Proibido”, a dúvida se resolve. A proibição decide por mim. Livro-me, assim, da terrível condição de ser um ser moral – que é, precisamente, a condição de tomar decisões sem ter proibições que decidam por mim. Eu não tinha conflitos morais porque as proibições já haviam tomado as decisões por mim. Assim caminhava eu, dezenove anos, pelo caminho das certezas e proibições, tranqüilo, pelo caminho que levava aos céus. Pois os céus não são o destino dos homens? Tão convencido estava eu do caminho que estava seguindo que até me havia matriculado numa escola onde se ensinam certezas e proibições, um seminário, porque o meu desejo era conduzir as almas pelo caminho que eu seguia.
Aí, o inesperado aconteceu. Um homem apareceu no meu caminho, andando na direção contrária. Perguntei-me, espantado, se ele não se dava conta de estar andando na direção errada. Aí, ao nos aproximarmos, ficamos um diante do outro, e olhei bem dentro dos olhos dele, e vi, refletido como num espelho, um mundo que eu nunca havia visto, o mundo que estava atrás de mim, o mundo do qual eu fugia, em busca dos céus. Olhando bem vi que naquele mundo não havia caminhos. “Caminhante, não há caminhos! Os caminhos se fazem ao caminhar!” E também não havia nem certezas e nem proibições. O que havia eram horizontes, direções, possibilidades, liberdade. E o mundo muito bonito. Me convidava…
O estranho não disse nada. Mas os seus olhos apontaram. E os meus olhos se abriram. Experimentei então os medos e os risos das dúvidas. Pois não é isso que experimenta o alpinista que escala o Aconcágua? O risco da morte bem vale a emoção dos desafios! Os que não suportam dúvidas jamais escalam picos; eles ficam nas planícies andando pelos caminhos conhecidos e seguros. Experimentei a alegria e o sofrimento de ter de tomar decisões sem que ninguém me desse ordens ou proibições, tendo apenas o meu próprio coração como conselheiro. Troquei o caminho que leva aos céus pelos muitos caminhos que levam ao mundo. E assim tenho andado pela vida afora, sem certezas e sem proibições… Tudo por causa do olhar daquele homem…
Ele, o estranho com que me encontrei, viveu aqui em Campinas. E posso dizer que a minha vida se divide em dois períodos: antes de conhecê-lo, depois de conhecê-lo. O seu nome era Richard Shaull. Lembro-me perfeitamente bem: encontramo-nos pela primeira vez na avenida Brasil, próximo ao cruzamento com a rua Frei Antônio de Pádua. Era o ano de 1953. As casas eram poucas, os eucaliptos eram muitos. Não falava português; falava espanhol. Havia sido expulso da Colômbia, por ordens da hierarquia católica. Uma igreja construída sobre verdades e proibições não pode suportar a presença de alguém que ensina dúvidas e liberdade. Viera então para o Brasil como professor do Seminário Presbiteriano, à avenida Brasil, 1.200. Se me perguntarem: “O que foi que você aprendeu com ele?” – a resposta é simples: “Dick Shaull me ensinou a pensar.” Lembro-me de um prova que fiz em uma de suas disciplinas. Eu estava certo de que teria 10, porque a prova tinha sido completa, perfeita. Mas ganhei um 9.0. Fui reclamar. Aleguei que havia escrito precisamente o que ele havia dito nas aulas. Ele me respondeu: “Por isso mesmo. Você apenas repetiu o meu pensamento. Lendo a sua prova eu não aprendi nada. Eu esperava encontrar na prova o seu pensamento…”
Profetas não são videntes que anunciam um futuro que vai acontecer. Profetas são poetas que desenham um futuro que pode acontecer. Profetas sugerem um caminho. Richard Shaull falava de futuros com que nós nunca havíamos sonhado. Ele via o que ninguém mais estava vendo. Em seis meses ele já sabia muito mais sobre o Brasil do que eu. Foi ele que me apresentou a um catolicismo inteligente. Sugeriu que eu lesse A Descoberta do Outro e Lições de Abismo, livros dos anos de lucidez de Gustavo Corção. Foi através dele que fiquei sabendo dos movimentos de renovação que silenciosamente fermentavam dentro da Igreja Católica, a renovação bíblica, a renovação litúrgica, movimentos esses que haveriam de influenciar profundamente o Papa João XXIII – de saudosíssima memória! – e o Concílio do Vaticano II.
Pensador profundamente mergulhado na tradição da Reforma Protestante (celebrada no dia 31 de outubro, data em que Lutero afixou suas “95 Teses”, às portas da catedral de Wittenberg), ele nos ensinou a lição fundamental de teologia: “O problema do céu, Deus já o resolveu por nós. Não há nada que tenhamos de fazer. Resolvido o problema do céu, estamos livres para cuidar da terra, que é o nosso destino…”
Shaull tinha visões de um mundo diferente. Foi o primeiro que me falou da responsabilidade social dos cristãos. Se, para a igreja tradicional o mundo era o lugar da perdição do qual os cristãos deveriam fugir – foi isso que os monges fizeram –, para Shaull o mundo era o lugar da nossa vocação. É preciso estar presente no mundo para que ele se renove, ele dizia. Essa palavra, “presença”: como era importante no seu pensamento! E foi assim que ele liderou um projeto impensável: um grupo de seminaristas, durante as férias, trabalhando como operários numa fábrica na Vila Anastácio, em São Paulo. A inspiração para esse projeto veio de um movimento católico, os “padres operários” que, na França, resolveram parar de esperar que os trabalhadores fossem à igreja, e foram, eles mesmos, até onde eles viviam: as fábricas. Sem o saber, Shaull estava lançando as sementes da “teologia da libertação”.
Cerca de 10 anos antes do Concílio do Vaticano II ele já sonhava com o ecumenismo. Ecumenismo: essa palavra era maldita tanto para protestantes quanto católicos. Para os católicos, donos da verdade, maldita porque os protestantes eram apóstatas. Para os protestantes, donos da verdade, maldita porque os católicos eram idólatras. Inimigos irreconciliáveis, como poderiam católicos e protestantes se assentar para partilhar de uma fé comum e do mesmo ritual eucarístico? Pois o Shaull, andando na direção contrária como convém a um profeta, resolveu transgredir o proibido: organizou encontros secretos com os dominicanos de São Paulo e nos convidou, um pequeno grupo de seminaristas, a participar da conspiração. Sabíamos que se a conspiração fosse descoberta a punição seria certa: seríamos expulsos do seminário. E assim, com uma mistura de medo e de alegria, lá íamos nós com o Shaull, para uma experiência com que jamais havíamos sonhado. Foi bom descobrir que os católicos eram pessoas inteligentes, amantes da Bíblia, fraternas… Até então não sabíamos disso!
Não conheço ninguém que em tão curto espaço de tempo tenha semeado tanto. Não é possível contar tudo. Só posso dizer que um homem que anda na direção contrária não o faz impunemente. Os profetas são seres malditos. Nietzsche, um outro que caminhou na direção contrária, sabia o preço que se paga por ver o que os outros não vêem. Dizia ele: “Os fariseus têm de crucificar aquele que inventa a sua própria virtude”. Aqueles que não vêem odeiam aqueles que vêem. Richard Shaull foi crucificado. As igrejas não o suportaram: expulso da Colômbia, pelos católicos, expulso do Brasil, pelos protestantes…
Agora ele ficou encantado. Partiu. É certo que plantarei uma árvore para ele no meu lugarzinho solitário, no alto de um montanha, à beira de um vulcão, junto com as árvores de outros conspiradores… No silêncio, quando não houver ninguém por perto, as árvores conversarão entre si…
…“Sejamos simples e calmos/ como os regatos e as árvores,/ E Deus amar-nos-á fazendo de nós/ Belos como as árvores e os regatos/ E dar-nos-á verdor na sua primavera,/ E um rio aonde ir ter quando acabemos!” Alberto Caieiro.
Richard Shaull (1919-2002), teólogo presbiteriano de origem norte-americana, foi missionário na Colômbia e no Brasil, respectivamente nas décadas de 1940 e 1950-60. Colaborou com os movimentos da juventude evangélica como a União Cristã dos Estudantes Brasileiros (UCEB), a União Latinoamericana da Juventude Evangélica (ULAJE), com o Departamento de Responsabilidade Social da Igreja (DRSI) da Confederação Evangélica Brasileira (CEB), com a junta Igreja e Sociedade na América Latina (ISAL) e com o Conselho Mundial de Igrejas. Como um dos precussores e expoentes do ecumenismo e da teologia da libertação, foi também professor do Seminário Presbiteriano do Sul (Campinas) tendo entre seus alunos Rubem Alves. Depois do golpe militar em 1964 foi proibido durante vinte anos de vir ao Brasil. Esta crônica é uma homenagem de Rubem Alves ao seu mestre.
Eu era jovem e andava por um caminho plano e seguro. Todos os seus detalhes me haviam sido ensinados. Ele estava todo sinalizado com tabuletas para evitar que alguém se perdesse. Em algumas tabuletas se liam “certezas”. Em outras, “proibições”. Certezas e proibições têm importantes funções psicológicas. As certezas nos dizem que já encontramos a verdade. Quem já encontrou a verdade deixa de procurar. As certezas, então, embalam a inteligência que se põe a dormir. É tranqüilizante saber-se possuidor da verdade. Eu vivia tranqüilo. As proibições, por sua vez, nos dizem o que não se pode fazer. Sabendo-se o que não se pode fazer somos libertados da terrível necessidade de tomar decisões. As decisões são necessárias quando nos defrontamos com uma encruzilhada, bifurcação, dois caminhos à nossa frente. Posso tomar o caminho da direita, posso tomar o caminho da esquerda. Mas não há nenhuma tabuleta indicando qual deles conduz ao fim desejado. Toda encruzilhada nos coloca numa situação de incerteza. E a incerteza produz ansiedade: é preciso decidir, sem saber ao certo… Mas se existe uma tabuleta num dos caminhos com a palavra “Proibido”, a dúvida se resolve. A proibição decide por mim. Livro-me, assim, da terrível condição de ser um ser moral – que é, precisamente, a condição de tomar decisões sem ter proibições que decidam por mim. Eu não tinha conflitos morais porque as proibições já haviam tomado as decisões por mim. Assim caminhava eu, dezenove anos, pelo caminho das certezas e proibições, tranqüilo, pelo caminho que levava aos céus. Pois os céus não são o destino dos homens? Tão convencido estava eu do caminho que estava seguindo que até me havia matriculado numa escola onde se ensinam certezas e proibições, um seminário, porque o meu desejo era conduzir as almas pelo caminho que eu seguia.
Aí, o inesperado aconteceu. Um homem apareceu no meu caminho, andando na direção contrária. Perguntei-me, espantado, se ele não se dava conta de estar andando na direção errada. Aí, ao nos aproximarmos, ficamos um diante do outro, e olhei bem dentro dos olhos dele, e vi, refletido como num espelho, um mundo que eu nunca havia visto, o mundo que estava atrás de mim, o mundo do qual eu fugia, em busca dos céus. Olhando bem vi que naquele mundo não havia caminhos. “Caminhante, não há caminhos! Os caminhos se fazem ao caminhar!” E também não havia nem certezas e nem proibições. O que havia eram horizontes, direções, possibilidades, liberdade. E o mundo muito bonito. Me convidava…
O estranho não disse nada. Mas os seus olhos apontaram. E os meus olhos se abriram. Experimentei então os medos e os risos das dúvidas. Pois não é isso que experimenta o alpinista que escala o Aconcágua? O risco da morte bem vale a emoção dos desafios! Os que não suportam dúvidas jamais escalam picos; eles ficam nas planícies andando pelos caminhos conhecidos e seguros. Experimentei a alegria e o sofrimento de ter de tomar decisões sem que ninguém me desse ordens ou proibições, tendo apenas o meu próprio coração como conselheiro. Troquei o caminho que leva aos céus pelos muitos caminhos que levam ao mundo. E assim tenho andado pela vida afora, sem certezas e sem proibições… Tudo por causa do olhar daquele homem…
Ele, o estranho com que me encontrei, viveu aqui em Campinas. E posso dizer que a minha vida se divide em dois períodos: antes de conhecê-lo, depois de conhecê-lo. O seu nome era Richard Shaull. Lembro-me perfeitamente bem: encontramo-nos pela primeira vez na avenida Brasil, próximo ao cruzamento com a rua Frei Antônio de Pádua. Era o ano de 1953. As casas eram poucas, os eucaliptos eram muitos. Não falava português; falava espanhol. Havia sido expulso da Colômbia, por ordens da hierarquia católica. Uma igreja construída sobre verdades e proibições não pode suportar a presença de alguém que ensina dúvidas e liberdade. Viera então para o Brasil como professor do Seminário Presbiteriano, à avenida Brasil, 1.200. Se me perguntarem: “O que foi que você aprendeu com ele?” – a resposta é simples: “Dick Shaull me ensinou a pensar.” Lembro-me de um prova que fiz em uma de suas disciplinas. Eu estava certo de que teria 10, porque a prova tinha sido completa, perfeita. Mas ganhei um 9.0. Fui reclamar. Aleguei que havia escrito precisamente o que ele havia dito nas aulas. Ele me respondeu: “Por isso mesmo. Você apenas repetiu o meu pensamento. Lendo a sua prova eu não aprendi nada. Eu esperava encontrar na prova o seu pensamento…”
Profetas não são videntes que anunciam um futuro que vai acontecer. Profetas são poetas que desenham um futuro que pode acontecer. Profetas sugerem um caminho. Richard Shaull falava de futuros com que nós nunca havíamos sonhado. Ele via o que ninguém mais estava vendo. Em seis meses ele já sabia muito mais sobre o Brasil do que eu. Foi ele que me apresentou a um catolicismo inteligente. Sugeriu que eu lesse A Descoberta do Outro e Lições de Abismo, livros dos anos de lucidez de Gustavo Corção. Foi através dele que fiquei sabendo dos movimentos de renovação que silenciosamente fermentavam dentro da Igreja Católica, a renovação bíblica, a renovação litúrgica, movimentos esses que haveriam de influenciar profundamente o Papa João XXIII – de saudosíssima memória! – e o Concílio do Vaticano II.
Pensador profundamente mergulhado na tradição da Reforma Protestante (celebrada no dia 31 de outubro, data em que Lutero afixou suas “95 Teses”, às portas da catedral de Wittenberg), ele nos ensinou a lição fundamental de teologia: “O problema do céu, Deus já o resolveu por nós. Não há nada que tenhamos de fazer. Resolvido o problema do céu, estamos livres para cuidar da terra, que é o nosso destino…”
Shaull tinha visões de um mundo diferente. Foi o primeiro que me falou da responsabilidade social dos cristãos. Se, para a igreja tradicional o mundo era o lugar da perdição do qual os cristãos deveriam fugir – foi isso que os monges fizeram –, para Shaull o mundo era o lugar da nossa vocação. É preciso estar presente no mundo para que ele se renove, ele dizia. Essa palavra, “presença”: como era importante no seu pensamento! E foi assim que ele liderou um projeto impensável: um grupo de seminaristas, durante as férias, trabalhando como operários numa fábrica na Vila Anastácio, em São Paulo. A inspiração para esse projeto veio de um movimento católico, os “padres operários” que, na França, resolveram parar de esperar que os trabalhadores fossem à igreja, e foram, eles mesmos, até onde eles viviam: as fábricas. Sem o saber, Shaull estava lançando as sementes da “teologia da libertação”.
Cerca de 10 anos antes do Concílio do Vaticano II ele já sonhava com o ecumenismo. Ecumenismo: essa palavra era maldita tanto para protestantes quanto católicos. Para os católicos, donos da verdade, maldita porque os protestantes eram apóstatas. Para os protestantes, donos da verdade, maldita porque os católicos eram idólatras. Inimigos irreconciliáveis, como poderiam católicos e protestantes se assentar para partilhar de uma fé comum e do mesmo ritual eucarístico? Pois o Shaull, andando na direção contrária como convém a um profeta, resolveu transgredir o proibido: organizou encontros secretos com os dominicanos de São Paulo e nos convidou, um pequeno grupo de seminaristas, a participar da conspiração. Sabíamos que se a conspiração fosse descoberta a punição seria certa: seríamos expulsos do seminário. E assim, com uma mistura de medo e de alegria, lá íamos nós com o Shaull, para uma experiência com que jamais havíamos sonhado. Foi bom descobrir que os católicos eram pessoas inteligentes, amantes da Bíblia, fraternas… Até então não sabíamos disso!
Não conheço ninguém que em tão curto espaço de tempo tenha semeado tanto. Não é possível contar tudo. Só posso dizer que um homem que anda na direção contrária não o faz impunemente. Os profetas são seres malditos. Nietzsche, um outro que caminhou na direção contrária, sabia o preço que se paga por ver o que os outros não vêem. Dizia ele: “Os fariseus têm de crucificar aquele que inventa a sua própria virtude”. Aqueles que não vêem odeiam aqueles que vêem. Richard Shaull foi crucificado. As igrejas não o suportaram: expulso da Colômbia, pelos católicos, expulso do Brasil, pelos protestantes…
Agora ele ficou encantado. Partiu. É certo que plantarei uma árvore para ele no meu lugarzinho solitário, no alto de um montanha, à beira de um vulcão, junto com as árvores de outros conspiradores… No silêncio, quando não houver ninguém por perto, as árvores conversarão entre si…
…“Sejamos simples e calmos/ como os regatos e as árvores,/ E Deus amar-nos-á fazendo de nós/ Belos como as árvores e os regatos/ E dar-nos-á verdor na sua primavera,/ E um rio aonde ir ter quando acabemos!” Alberto Caieiro.
sábado, 12 de janeiro de 2013
Compartilhando um texto sobre a mulher
JESUS E A MULHER CANANÉIA - Reverenda Elena Alves Silva
"Ó mulher, grande
é a tua fé! Faça-se contigo como queres." (Mateus 15, 21-28)É muito difícil ouvir um não, torna-se ainda mais dolorido ouvir um não, quando você tem absoluta certeza de que seu pedido é justo. Nesta história do evangelho, a mulher Cananéia ouviu um não; e o que é pior, um não carregado de argumentos. Mais duro que ouvir um "não" é ser ignorada, e isto também aconteceu com ela.
Nas lutas das mulheres por conquistas no mundo do trabalho e na busca de direitos iguais na sociedade, temos percebido o quanto a palavra não é repetida e de quantas maneiras as mulheres recebem este não.
Existem maneiras de reagir a um não: você pode se resignar e aceitar a resposta negativa, ou lutar por aquilo que você acredita e gritar. Eis o que a mulher Cananéia fez. Eis o seu exemplo e a sua história.
A postura submissa desta mulher, o seu jeito de aproximar-se de Jesus, é somente uma parte de sua identidade. A sua petição e a sua insistência desafiam a identidade e missão de Jesus e confronta a ideologia imperialista de Israel. Ela exige que Jesus torne disponível para ela o que está disponível para Israel. Sua petição não é para ela, mas para Jesus libertar sua filha das forças que a oprimem.
Jesus não responde com ajuda instantânea, mas com silêncio. Não é dado nenhum motivo, entretanto, os fatores étnicos, culturais, religiosos, econômicos e políticos, como também seu gênero, sugerem numerosas razões para Jesus ignorá-la. Num segundo momento Jesus afirma: "Não é bom tirar o pão dos filhos e dá-los aos cachorrinhos".
Mesmo depois de ter recebido uma resposta negativa, sem amedrontar-se, a mulher se ajoelha diante de Jesus e clama por socorro. Junto com a sua submissão ela pede novamente e continua, audaciosamente, desafiando uma ideologia de favoritismo. Ela reclama o seu lugar nos propósitos de Deus.
Aqui se concentra a força desta história: a mulher não é intimidada pela resposta de Jesus. Ao invés, ela, com astúcia e corajosamente reformula a resposta de Jesus: "Também os cachorrinhos comem das migalhas que caem das mesas dos seus donos". A resposta dela se move além das barreiras da divisão étnica, cultural, religiosas, de gênero e política, para as possibilidades que permanecem firmes às promessas de Deus de abençoar todas as nações da terra.
A resposta engenhosa da mulher abre possibilidades para sua filha e para Jesus. Ele responde positivamente e realiza o pedido daquela mulher.
Esta história nos dá uma grande lição, assim como deu uma grande lição a Jesus e seus discípulos. Não podemos nos enclausurar dentro de nossos conceitos e preconceitos, sem perceber a realidade ao nosso redor. É preciso parar e ouvir o que as mulheres, as mães, as pessoas, estão pedindo; mesmo que pareça incoerente, mesmo que incomode, mesmo que seja preciso mudar as regras...
É preciso lembrar a luta de tantas mulheres que, ao ouvirem um não, persistiram e lutaram para conquistar o que queriam.
Referência: CARTER, Warren. O Evangelho de São Mateus - comentário
sócio político e religioso a partir das margens, Paulus, São Paulo, 2002.
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