"É curioso como não sei dizer quem sou.
Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer.
Sobretudo tenho medo de dizer
porque no momento em que tento falar
não só não exprimo o que sinto, como o que sinto
se transforma lentamente no que eu digo..." (Clarice Lispector)
O texto para
reflexão é Atos 2.14a, 22-36 é parte de uma prédica missionária de Pedro (At
2.14-40), pronunciada após o evento de Pentecostes. Lá no Evangelho de Lucas, cap. 3.4s., Jesus começa
seu ministério após ter descido sobre ele o Espírito Santo em forma de pomba
(batismo). Em At 2. l s. o Espírito Santo desce, desta vez em forma de línguas
de fogo, dando início à comunidade de Jerusalém. Esse paralelismo redacional
quer dizer: assim como Jesus atuou na força do Espírito Santo (veja ainda Lc
4.1,14,18!), também sua Igreja viverá pela força do Espírito, desta vez na
pessoa do Cristo. E quando me refiro a descida do Espirito Santo não significa
que as pessoas ficarão delírio, espanto
entusiástico ou a impressão de que tenhamos talvez tomado uns tragos a mais.
Não é isso! É incomodo, é transformação pessoal, sobriedade, esperança, força,
animo, equilíbrio, luta, fé. É deixar a paz de Deus superar todas as
racionalidades. É ir contra a realidade que destrói, mata as pessoas e tudo que
Deus criou. É a força dos sonhos que o evangelho de Cristo semeou em Jerusalém!
Assim como aconteceu na experiência de
Jesus ao longo de seu ministério, o Espírito desceu sobre ele por ocasião do
batismo (Lc 3.22), guiou-o ao deserto para ser tentado pelo diabo (Lc 4.1),
conduziu-o pelas cercanias da Galiléia (Lc 4.14), iluminou-o em sua pregação
inaugural em Nazaré, onde ele anunciou programaticamente a sua missão (Lc
4.18-21). Coisa semelhante se passa com os discípulos: eles só podem cumprir o
mandato do ressuscitado de colocar em movimento a trajetória da Palavra de
Jerusalém até os confins da terra (At 1.8) porque a promessa da assistência do
Espírito acaba de se cumprir.
Aqui, o Espírito Santo não é outro
senão aquele que orientou Jesus em seu ministério. Depois de ser exaltado à
destra de Deus, Jesus derramou seu Espírito sobre toda a comunidade,
qualificando-a para testemunhar a ação de Deus em favor de seu povo (v. 33).
Após a descida do Espírito Santo,
surge a primeira pregação pós-pascal. A resposta da comunidade é fundamental
(v. 37): Que faremos, irmãos? Arrependimento, Batismo e vários relatos de como
viviam os cristãos na comunidade de Jerusalém. Atos 2.42-47 centraliza e
reproduz de forma sintética e idealizada esse processo pós-pascal que
determinará o início da Igreja cristã.
Os sinais da comunidade primitiva
ainda hoje estão presentes na Igreja de Cristo. Refiro-me principalmente à
doutrina dos apóstolos, à comunhão comunitária, ao partir do pão (Eucaristia) e
à oração. E como isso tudo nos faz bem!
A doutrina dos apóstolos nos remete a tradição
apostólica. É parte fundamental da Igreja cristã. Lucas coloca essa questão
como intenção básica de sua obra. Em Lc l .4 dá início ao Evangelho com as
verdades que Jesus começou a fazer e a ensinar (veja At 1.1).
Já na comunhão comunitária é preciso
considerar o sentido duplo de At 4.32: um só coração e alma e, segundo, no uso
social dos bens particulares. Muito se disse e se escreveu sobre esse comunismo
cristão, mas não se pode considerá-lo um programa social e econômico. Trata-se
muito mais de uma visão da grande família em que bens são socializados quando
uma necessidade se faz presente entre os familiares. Exegetas apontam ainda que
nesse texto há terminologia helenística, o que indica o interesse de Lucas em falar
às pessoas mais esclarecidas da cultura grega. Outra tradição presente está na
mesa partilhada com os pobres da tradição judaica. Partilhar o pão com os que
não tem!
O partir do pão que traz a tradição do
rito inicial da ceia judaica. Em At 20.7,11 é usado como termo técnico para
designar a Ceia do Senhor. Em l Co 11.20s. Paulo também interpreta a Eucaristia
mais como um exame de fé em Jesus Cristo do que como oportunidade de matar a
fome. E a oração. Ah! As orações no início eram feitas no templo (v. 46) e se
orientavam pelo costume das orações diárias dos judeus (At 3.1). Com o passar
do tempo, desenvolveram uma forma própria de oração que transparece nos
cânticos de Maria e Zacarias (Lc 1) ou em At 4.24-31, onde a fé cristã é
contextualizada em seu caráter transformador e libertador. Hoje podemos fazer
nossas orações em casa, na igreja ou em qualquer lugar.
Esses elementos, ainda hoje presentes
de forma ideal na Igreja cristã, exaltam a riqueza da vida comunitária em suas
repercussões sobre a vida pessoal e coletiva dos cristãos e cristãs. O louvor a
Deus e a Cristo tem a ver com a responsabilidade social para com os outros. A
comunhão eucarística é ampliada pelo culto público ao qual todos os grupos
sociais e culturais devem ter acesso.
Diferentemente da exclusão judaica, o
cristianismo abre-se para democratizar a fé no Deus que se revelou
poderosamente em Jesus Cristo. E nisso tudo temos a fé. E a fé tem a ver com o
coração. Que faremos, irmãos e irmãs? Deus ratificou a Nova Aliança em Cristo.
Por fé em Cristo, a salvação se abre para toda a humanidade. Pela presença do
Espírito de Cristo, na vida comunitária, é criada a Igreja que testemunhará com
poder e coragem novos tempos para a fraternidade e solidariedade social.
A resposta de Jerusalém passa, pois, por
arrependimento, Batismo, ensino cristão, vida comunitária, Eucaristia, oração,
diaconia e louvor. Como chega isso a nós após 2 mil anos de Igreja cristã? Como
está isso em relação à nossa comunidade? Pensemos e sigamos com fé e esperança!
Pois o Trino Deus está conosco! Odete Liber